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China hoje

Estava andando com uma amiga na rua e era horário de saída das crianças da escola, de uma que fica aqui perto do campus. Em um certo trecho tivemos que sair da calçada e andar pela rua porque um carro sedan estava literalmente, inteiramente estacionado em cima da calçada, o pai do lado de fora ajudando calmamente o filhos e amiguinhos a colocarem as malas dentro do carro. Fiquei pensando, e juntando essas a outras experiências urbanas parecidas comentei com a minha amiga que eu acho a cidade de Hangzhou espacialmente “ótima”, mas que parece que não é totalmente compatível com a vida e os hábitos da população. Cidades grandes e turísticas como Hangzhou vivem e estão vivendo reformas grandes. Quem vem de São Paulo pra cá se impressiona com a qualidade das calçadas, com as ciclovias e as avenidas arborizadas. Mas será que esses não são os nossos padrões de cidade “ótima”? Eu acredito que as autoridades chineses pretendem, com a “renovação” e “embelezamento”, ou com o “desenvolvimento” (para usar a palavra favorita delas) das cidades, também renovar, embelezar e desenvolver a própria população em seus hábitos, ou seja, neste caso, ocidentaliza-la. Eu acredito que a China ganharia muito olhando mais para si, valorizando seus próprios hábitos e seu próprio povo, sua própria história, e a partir desse olhar mais introvertido perceber e conceber como seriam cidades “ótimas”, à maneira chinesa. Do jeito que está hoje, os chineses acabam sendo o povo que mais desrespeita regras do mundo; claro!, se as regras não foram moldadas para esta população, mas sim baseadas e copiadas de outras nações e povos. Estacionar sobre a calçada, cuspir por toda a rua, passar no sinal vermelho e atravessar a rua no sinal vermelho também; secar as roupas e as verduras num varal na calçada. Os chineses estão constantemente quebrando regras porque o espaço onde estão foi a eles imposto repentinamente. Impõe-se um novo espaço e um novo modo de vida. Essa população flutuando no tempo e no espaço faz com que nós estrangeiros neste país tenhamos uma sensação de caos diário. Será que os próprios chineses também não?

Foto: Calçada, ciclovia/motocavia, ilha de árvores e via de automóveis, numa avenida aqui perto do campus.

Seca, Crise, Carros

1920 foi o ano em que os carros pela primeira vez apareceram com alguma expressividade na China. O jornal de Shanghai até tinha um caderno semanal dedicado a eles. Isso principalmente por conta de uma dramática seca que deixou milhões famintos no norte da China, e em regiões alcançáveis apenas via estradas antigas, quando existiam, construídas para veículos movidos a cavalo na melhor das situações. A Cruz Vermelha americana foi então acionada e aconteceu entao a primeira empreitada na construção de rodovias na China, com o intuito de levar comida aos que estavam morrendo, mas também de introduzir o produto à nação. As estradas foram construídas pelos próprios famintos chineses, numa reunião de mão-de-obra maior do que a quantidade de trabalhadores em rodovias dos EUA inteiros, naquela época. O que parecia ser o florescimento da industria automobilistica na China foi postergado mais de 50 anos, por conta da guerra Sino-japonesa logo na década de 30 e das décadas seguintes de governo sob Mao, em que era na pratica impossível para um cidadão chinês comprar ou usar um carro. Com os anos da reforma, já em 80 e vários, o automóvel surgiu novamente, e a industria e o mercado puderam florescer, desta vez com uma outra motivação negativa emergente em 1998: a Crise Financeira Asiática. Como a fome de 1920 ela motivou medidas governamentais de contrapartida. Hoje o carro, um item ainda bebê na lista de objetos de desejo dos chineses, finalmente conquistou a nação das bicicletas, como diz a expressão chinesa que se refere à China como “Reino das bicicletas”: “自行车王国” — (sendo 自行车 a palavra para bicicleta, contendo caracteres que sugerem “veículo que se move por si”, diferente de “trem” 火车 por exemplo, que é o “veiculo de fogo”; e a palavra 王国, que traduzimos como “reino”).

Foto: Xihu, de novo. Com o fim das provas, esta sexta-feira foi dia livre. Já está bem frio, planejei acordar tarde mas percebi que havia um lindo sol no céu, então me permiti um caminhada até o lago. Diferente de todos os outros dias em que estive lá, estava uma paz, não tão cheio de gente como geralmente. Exceto por um grupo escolar em excursão, o que parece bastante barulhento e inconveniente, mas que na verdade me entreteve demais, afinal nada mais gostoso do que interagir com umas crianças chinesas.

Espetinhos

Espetinhos de rua aqui do lado da faculdade. Sem refrigeração, carnes, legumes e verduras espetadinhos em palitos de madeira estão disponíveis por 1 kuài cada, ou seja, aproximadamente 25 centavos de real cada, não importa se é de carne ou só uns verdinhos. O lugar é um estacionamento de motos durante o dia e ponto de venda de espetinhos durante a noite e madrugada. A mulher dá um cestinho pra você escolher e colocar dentro os espetos que você quer que ela prepare. Você coloca, dá pra ela, ela conta quantos são e corbra seu dinheiro, você paga e ela já põe eles no fogo. Enquanto estão na grelha, ela passa em todos eles um pincel de pintar parede embebido com molho apimentado, escuro com pontinhos vermelhos. Hoje peguei umas batatas, tofu, nira, massinha de arroz. Não como as carnes por motivos óbvio de higiene e lucidez. Depois de cinco minutos esta tudo bem quente, apimentado, crocante e delicioso. Uma vezinha por semana, uns 4 ou 5 espetinhos não vão matar não. Muito menos engordar. A média de peso dos chineses está lá pelos 60 e poucos quilos, e prender a barriga é que não vai!

Peixes

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Há poucas semanas fomos a um chamado Beer Garden. Era uma sexta-feira à noite e apesar de eu não apreciar a bebida estava bastante satisfeita com o espaço, com o clima do lugar: um gramadão aberto, com várias mesas e bancos estilo piquenique, barraquinhas rodeando, servindo diversas opções de comidas feitas na hora. E céu estrelado, tempo fresco. Até que me virei um pouco pra me espreguiçar e vi a cena que arruinou a noite. Um dos cozinheiros das barraquinhas tinha em uma das mãos um peixe bem grande, vivo e agitado em uma das mãos, recem tirado do tanque. Ele estava em pé na frente da sua barraquinha, segurando o peixe. Ergueu o braço, o peixe todo esbaforido, e arremessou o peixe no chão, tacou com toda a força o peixe no piso de concreto que envolve o gramado. Fez um som muito alto e seco. Ele pegou o peixe do chão, não sei dizer se restava vida nele ou não, descamou e cortou em tiras, e usou de ingrediente pra algum prato que uma mesa de chineses pediu, todos homens, e que deixaram sobrando metade.

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Uma autora chinesa chamada Xinran que hoje mora em Londres uma vez escreveu em seu livro “O que os chineses não comem” sobre como é a relação entre os chineses e os peixes. Os diversos pratos, os lagos de carpas, o símbolo de sorte familiar, os ditos populares que sempre se referem a peixes. Falando sobre o dote das chinesas para ser ótimas mães, Xinran descreveu como um menino chines descobriu a verdade sobre cabeças de peixe. Como acontece com muitos jovens aqui, ele saiu do campo e foi para a cidade quase com seus 20 anos, para trabalhar. Na primeira vez que foi ao mercado, descobriu que as cabeças de peixe vendidas separadamente eram os itens mais baratos que tinham pra comprar. Ele ficou confuso, porque era o prato favorito da sua mãe, que os comia toda vez que tinham peixe em casa, e não deixava ele provar nenhuma vez, restando a carne da barriga e as visceras. Ela comia até os olhos. Ele perguntou pra vendedor e ouviu “Claro que as cabeças são as partes mais baratas, tem um gosto horrível”. Quando chegou o Ano Novo chinês visitou a casa, e teve a oportunidade de perguntar pra sua mãe a respeito das cabeças. Ouviu dela que era óbvio que as cabeças são baratas, porque tem um gosto horrível. “Mas então por que você sempre quer come-las, e diz que é sua parte favorita do peixe?” Ela: “Pra deixar a parte boa pra você e pro seu pai. Agora leve de volta esse monte de cabeças que você comprou pra mim, não quero isso”

Foto: aquários de peixes dourados num restaurante que almoçamos hoje, numa saída em grupo com toda a classe e a professora. Esses são só decorativos.

Arquiteturas

Domingo ensolarado, diferente dos outros dias precedentes de chuva e brancura. Todos acordam tarde. Fachada do terceiro edifício de alunos estrangeiros, onde estão os quartos duplos, vista da janela do meu corredor de quartos. Meu quarto também é fachada sul, e raios de sol desenham polígonos na cama e na parede. Ouvi dizer no entanto que o inverno por vir trará ainda mais chuvas que o outono; fico pensando quanto tempo minhas roupas lavadas na mão e penduradas no meu banheiro levarão pra secar quando essa hora chegar, de menos sol e mais água que terei.

Jiaozi II

Substituí o Pacman, o restaurante onde eu ia comer jiaozi, os bolinhos recheados fervidos em água, pelo que chamamos de “Jiaozi House” (foto), do outro lado da rua. Ninguém na realidade sabe qual é o nome verdadeiro do lugar, mas agora o que consideramos a especialidade deu o nome. O dono é um chinês baixinho, corcunda e com olhos arregalados. Vê a gente chegando de longe e já abre um sorrisão, grita lá pra dentro da cozinha “Jiaaaaoziiii! Zheli Chi” (“comer aqui”, versus “pra viagem”). Uma porção com uns 8 jiaozi custa 8 kuài, ou seja, 2 reais. Como é mesmo que eu sobrevivo com os preços de São Paulo, já nem sei. Que dificuldade vai ser, voltar!

Ninguém sabe pra onde está indo

“In China, it is not such a terrible thing to be lost, because nobody else knows exactly where they’re going, either. In the summer of 1996, when I first arrived in the country, I was immediately impressed by my own ignorance. Language, customs, history — all of it had to be learned, and the task seemed insurmountable.
Over time my learning curve never really flattened out. China is the kind of country where you constantly discover something new, and revelations occur on a daily basis. One of the most important discoveries is the fact that the Chinese share this sensation. This place changes too fast; nobody can afford to be overconfident in his knowledge, and there’s always some new situation to figure out. How does a peasant leave farm and find a factory job? Who teaches people how to start business? Where do they learn how to make cars, and how do they figure out how to drive them? Who show the small-town sophisticates how to dress and put on makeup? We are all out of place; nobody has today’s China figured out.”

Do livro de Peter Hessler, “Country Driving: A China Road Trip” (Harper Perennial, 2010)

Foto: tarde chuvosa de outono no centro da cidade, num momento e numa paisagem em que essas palavras de Peter Hessler fizeram todo o sentido.

Com mais tempo e menos sono, substituirei esse trecho em inglês por uma versão traduzida livremente por mim para o português; peço desculpas de antemão!

Coletividade I

Gatos nas prateleiras caóticas de uma loja de flores, do lado da quitanda de frutas onde costumo parar para comprar laranja. Dormir assim empilhado, desorganizado, sem distinção ou privilégio é modo de vida de milhões de chineses, até hoje.

Esses gatos me lembraram da Walled City em Kowloon, Hong Kong, já demolida mas marcada para sempre:

UHE Três Gargantas III

O rio Yangtze é o rio mais extenso da China. Nas terras de Qinghai, a região da China referente ao plateau tibetano, a extremo oeste, encontram-se ambas as nascentes do rio Yangtze e do rio Amarelo. O Yangtze então atravessa o país de oeste a leste por 6300 km até chegar a Shanghai, sua foz, passando por 10 províncias, regiões autônomas e municipalidades chinesas, cobrindo uma área de drenagem de mais de 1.8 milhões de km². Conhecido como “Rio Mãe”, o rio Yangtze, junto com o rio Amarelo, provem água para mais de 400 milhões de pessoas que vivem nas suas bacias. O rio de tamanha importância contudo também conta historias de desastres. Em aproximadamente 2100 anos, desde 180 a.C. até dias atuais o Yangtze transbordou com consequências graves 214 vezes, em média uma vez a cada década. O intervalo entre inundações se tornou menor ao longo do tempo. Nos 450 anos entre 1499 e 1949 a parte do rio que atravessa a província central de Hubei encheu 186 vezes, uma vez a cada dois ou três anos. Entre 1777 e 1870, três grandes inundações catastróficas ocorreram nas regiões mais altas do rio. No último século, imensas cheias no Yangtze estagnaram regiões inteiras do país em 1931, 1935, 1949, 1954, 1998 e 1999.

Simon Winchester, um inglês apaixonado pela China e autor de “The River in the Center of the World”, livro em que narra sua jornada pelo rio Yangtze acima, tem um palpite interessante: na realidade, essas cheias mais recentes não seriam menos espaçadas, tampouco piores ou mais catastróficas do que as de antigamente. Para ele, é uma questão de divulgação. A Usina Hidrelétrica das Três Gargantas teria sido pela primeira vez considerada no ínicio do século 20. Em um esforço para convencer o mundo e a própria nação chinesa de que a imensa e arriscada barragem seria uma boa ideia, as enchentes do rio seriam noticiadas como extremamente desastrosas, piores do que nunca e sem previsão de melhora do cenário. A Usina seria a única salvação de todos diante do dilúvio crônico do povo chinês.

Foto: mudei de quarto. Por dentro é igual ao antigo mas espelhado, o que faz toda a diferença é a localização dele no edifico. Antes eu estava no andar térreo, fachada norte, sem perspectiva de vida ou sol, quase pronta para montar um criadouro de baratas. Agora meu quarto é em outra asa do prédio, no quinto andar, o mais alto, e fachada sul, com o sol da manhã entrando em tudo! Quanta diferença; meu humor é outro! Que orgulho dos meus amigos arquitetos aí em casa, que com certeza trabalharão por causas nobres como essa: o bom humor.

E pra quem ficou curioso, tirei 97,5 de 100 na prova de mandarim 😉

Volta às aulas

Estou tendo aulas nestes sábado e domingo para repor as aulas perdidas no feriado (é como funciona os feriado chineses; deve ser reposto o tempo “perdido”). Amanhã tenho prova, pouco tempo para estudar e nenhum tempo para caprichar aqui no site!

Algumas palavras do vocabulário novo que vão cair na prova amanhã: 树叶 /shuye/ folha de árvore
经营 /jingying/ gerenciar (empresa, restaurante)
发展 /fazhan/ desenvolver
着急 /zhaoji/ ansioso, ansiedade
空调 /kongtiao/ ar-condicionado
增加 /zengjia/ aumento, crescimento (índice, número)
研究 /yanjiu/ pesquisar